sábado, 31 de outubro de 2015

Nós temos sorte! Todos os dias estamos com os nossos amigos especiais.

Até aos seis anos visi­tava com regu­la­ri­dade a minha avó, mãe do meu pai, que morava no Bairro Alto.
Lembro-me que a casa dava para um pequeno pátio no inte­rior do quar­tei­rão para onde se debru­ça­vam mil jane­las. O pátio, cir­cun­dado pela irre­gu­la­ri­dade da fachada do pré­dio vizi­nho, tinha no cen­tro uma fonte cir­cu­lar com pei­xes ama­re­los e encar­na­dos que abo­ca­nha­vam o oxi­gé­nio e o miolo de pão que lhes dava.
A casa, gigante para uma cri­a­tura pequena, tinha quar­tos, cor­re­do­res e peque­nas salas. No clo­set, que sepa­rava o cor­re­dor da sali­nha de cos­tura, exis­tia um armá­rio onde eu gos­tava de me escon­der bem no meio dos ves­ti­dos da minha avó. Lá brin­cava aos polí­cias e ladrões, aos cow­boys e aos índios antes de adormecer.
Den­tro do armá­rio, a pele da cara roçava os ves­ti­dos de Seda, Linho, Lã ou Astra­can e era uma sen­sa­ção boa visu­a­li­zar os luga­res que eles habi­ta­vam. O cheiro era sem­pre igual. O cheiro da minha avó.
Na fachada mais pró­xima do pátio, aquela que pare­cia que­rer engo­lir a fonte, estava quase sem­pre de pijama, um rapaz à janela.
Este rapaz, mais velho do que eu tal­vez cinco ou seis anos, não falava, e volta e meia pediam licença para que ele pudesse apa­nhar ar no pátio, sen­tado na cadeira de rodas.
Num tempo em que evi­ta­vam que as cri­an­ças se con­fron­tas­sem com a dife­rença, levavam-me para den­tro para que eu não con­vi­vesse com o menino espe­cial. Era, assim, a minha vez de ficar à janela, na sali­nha da tele­vi­são, a olhar para ele a fixar o céu, as nuvens e tudo o que pare­cia estar no alto. Quando um par­dal pou­sava na figueira do jar­dim da minha outra avó (sim, eram vizi­nhas) ele acom­pa­nhava o voo com o olhar e sorria.
Um dia, apanhou-me espe­cada a olhar para ele. Eu não sabia se havia de fugir ou de ace­nar e disse olá atra­vés do vidro. Abri a porta deva­gar e subi os três degraus que nos sepa­ra­vam. A cabeça dele inclinou-se deva­gar sobre o ombro direito e sor­riu. Ao sor­rir babou-se todo, e com os dois dedos da mão esquerda que mexiam esfre­gou a baba no pijama e eu vi-lhe um sor­riso maior ainda.
Nesse momento, a porta da fachada gulosa abriu-se, e uma som­bra cor­reu a rodar 180º a cadeira do rapaz. Ele esper­neou, mas os raios pre­sos aos aros dos velhos pneus roda­ram mais depressa ainda e lá o arre­ca­da­ram de novo.
Nunca mais o vi, mas em cada menino espe­cial o vejo a ele.
Texto retirado daqui.

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