terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A vida não passa de uma troca de cheiros


(…) Ao balcão, havia pescadores, guardas fiscais, carregadores. Acima de todas as vozes, pontificava a de um velho fardado de guarda prisional, que desatinava ebriamente num mar de verborreia:

- E todas as quartas-feiras, a donzela perfumada me dá uma nota de cem coroas para que a deixe a sós com o recluso. E à quinta, as cem coroas já marcharam em cerveja que nunca mais acaba. E quando chega ao fim a hora das visitas, a donzela sai com o fedor da cadeia nos seus vestidos elegantes; e o recluso torna para a cela com o perfuma da donzela na sua roupa de condenado. E eu fico com o cheiro da cerveja. A vida não passa de uma troca de cheiros.

- A vida e também a morte, podes dizê-lo – respondeu outro bêbedo, cuja profissão, como fiquei logo a saber, era coveiro. – Eu com o cheiro da cerveja tento tirar de cima o cheiro a morto. E só o cheiro a morto te tira de cima o cheiro da cerveja, como a todos os bebedores a que tenho de abrir a cova.

Interpretei este diálogo como um aviso para me pôr em guarda: o mundo está a desfazer-se e tenta atrair-me para a sua dissolução.    

Sem comentários:

Enviar um comentário